sábado, 17 de julho de 2010

Ruído de Passos-Do Livro:A via Crucis Do Corpo-Clarice Lispector




Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.
Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passando dias numa fazenda: a altitude , o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda.
Fora linda na juventde. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa. Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:
_ Quando é que passa?
-Passa o que , minha senhora?
_A coisa.
_Que coisa?
_A coisa repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
_ Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou-o espantada.
_Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
_ Não importa, minha senhora. É até morrer.
_Ma isso é o inferno!
_ É a vida, senhora Raposo.
A vida era isso então? Essa falta de vergonha?
_ E o que eu faço? Ninguém m quer mais...

O médico olhou-a com piedade.
_ Não há remédio minha senhora.
_ e , se eu pagasse?
_ Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
_ E... e se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que quero dizer?
_ É , disse o médico . Pode ser um remédio.
Então saiu do consultório.A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra , era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.
Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifício. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a benção da morte.
A morte.
Pareceu-lhe ouvir ruídos de passos.Os passos de seu marido Antenor Raposo.

Um comentário:

  1. Oportuna essa postagem se referindo ao Prazer na Terceira Idade, ou melhor dizendo, ao Prazer, porque este é atemporal.
    É certo que com o passar do tempo o corpo sofre mudanças, mas não o suficiente para calar os desejos. Entregar-se ao prazer traz um colorido a mais na vida, mantendo a alta-estima em dia.
    O prazer existe, porque existe um corpo que pulsa por viver bem ...
    Um espirito jovial que não se entrega ao tempo, nem aos fatos ...
    Uma alma que busca o seu melhor em cada existência.
    E assim se permite a Viver.

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